Segundo
certa mentalidade em vigor hoje, felicidade se identificaria com riqueza e
prazer. Mas tempo houve em que o homem não pensava assim. E era feliz...
O tema
deste artigo é um “nobre ofício”. Qual será ele?
Seguramente
— pensará algum leitor — o exercício de alguma elevada função na Corte
Britânica. Ou, quem sabe, um cargo de grande responsabilidade no Vaticano, ou
em alguma prestigiosa universidade, como a Sorbonne ou Coimbra?
Nada
disto!
De que
se trata, então?
Caro
leitor, permita-me ajudá-lo. É algo que vem do passado, de um passado cristão.
O “Nobre Ofício” era o título dado aos... sapateiros ingleses na Idade Média!
Efetivamente,
os trabalhadores manuais da corporação dos sapateiros ufanavam-se, não somente
da qualidade de seus produtos, mas também do próprio ofício que exerciam. A
ponto de eles mesmos o designarem de o “Nobre Ofício”.
Não era
fácil, porém, ser admitido na confraria. Para ser aceito como participante do
“Nobre Ofício”, não bastava ser bom profissional. Era preciso também saber
“cantar, tocar corneta de chifre, tocar flauta, manejar a lança, combater com
espada, descrever em versos seus instrumentos de trabalho”.
A
corporação de sapateiros ingleses, como inúmeras outras existentes na Europa
medieval, era inteiramente independente do poder estatal, inclusive do Rei.
Tinham essas corporações suas leis próprias, seus costumes, seus juízes — os
“mestres juramentados” — que impunham sanções àqueles que se comportavam mal ou
que, por suas trapaças, desprestigiavam a profissão.
Sobretudo,
tinham seus capelães, seus santos padroeiros, suas igrejas, suas festas e
procissões. Uma de suas principais preocupações era que todos os irmãos da
confraria fossem bons cristãos.
Até
hoje, por exemplo, pode-se ver na maravilhosa Catedral de Chartres (França) os
vitrais de extraordinária beleza oferecidos pelos padeiros, pelos pescadores,
pelos vinhateiros, ao lado dos que foram doados pela Rainha Branca de Castela,
mãe do Rei São Luís.
O
costume, impregnado de caridade cristã, fazia com que os confrades do “Nobre
Ofício” se ajudassem mutuamente, em qualquer lugar onde se encontrassem. Podiam
uns ser do norte, outros do sul, mas estavam todos unidos por um vínculo
religioso que os levava a auxiliarem-se nas circunstâncias adversas.
Patrões,
trabalhadores, aprendizes, cada qual conservando sua posição, se ajudavam, se
protegiam e se estimulavam a progredir na vida cristã e... na qualidade dos
sapatos que produziam.
Por
exemplo, os “mestres juramentados” — em geral, os sapateiros mais idosos —
repreendiam severamente o patrão que não cuidava da virtude de seus aprendizes,
ou que prejudicava os fregueses pela má qualidade dos sapatos produzidos. Ao
mesmo tempo, prestavam auxílio aos irmãos em situação de crise nos negócios, às
viúvas e aos órfãos dos sapateiros falecidos.
Todos
os ofícios da sociedade medieval estavam organizados da mesma forma.
Constituíam verdadeiras irmandades dentro da sociedade civil, nas quais
circulava a seiva do Evangelho.
Ufanavam-se
de suas obras de caridade. Por exemplo, os ourives de Paris conseguiram licença
para, um de cada vez, abrirem a loja nos domingos e dias festivos. O lucro
obtido nesses dias destinava-se a oferecer uma refeição aos pobres no domingo
de Páscoa. “Quem abre sua loja nesses dias, deposita na caixa da confraria tudo
quanto ganhou (...) e, com esse dinheiro, se paga uma refeição para os pobres
do Hospital de Paris, no dia de Páscoa de cada ano”.
Tudo
isto era feito numa atmosfera de concórdia e alegria difícil de se entender em
nossos dias.
Nas
festas da cidade, as corporações desfraldavam suas bandeiras durante os
desfiles solenes, disputando a preeminência. Constituíam elas pequenos mundos
extraordinariamente dinâmicos, ativos e, sobretudo, cristãos, que davam à
cidade seu impulso e sua fisionomia característica.
Eis um
pitoresco fato ilustrativo de como se passavam as coisas quando o espírito da
Santa Igreja Católica impregnava a sociedade civil.
O
sapateiro Tom Drum encontrou-se em viagem com um jovem nobre arruinado e o convidou
a ir com ele a Londres.
— Eu
pago as despesas, e em Londres nos divertiremos muito.
— Pagas
como?! Pensei que toda a tua fortuna não passasse de alguns centavos... —
objetou o fidalgo.
Respondeu
Tom Drum:
“Explicar-te-ei. Se fosses sapateiro como eu,
poderias viajar de um extremo a outro da Inglaterra com apenas um centavo no
bolso. Em cada cidade encontrarias alojamento, comida e bebida, e nem sequer
precisarias gastar teu único centavo. Os sapateiros não gostam de ver que falta
algo a qualquer de seus colegas. Nosso regulamento estabelece o seguinte: se
chega a uma cidade um companheiro sem pão nem dinheiro, basta-lhe
apresentar-se. Não precisará preocupar-se, pois os sapateiros da cidade o
receberão bem e lhe darão hospedagem e comida grátis. E se quiser trabalhar, a
corporação tratará de arranjar-lhe emprego, ele não terá preocupações” 1.
1)
As Cidades e as Instituições urbanas na Idade Média, apud Régine Pernoud, A Luz
da Idade Média, pp. 71-72.
Pe. Juan Carlos Casté . Revista Arautos do Evangelho n. 23. Nov 2003