O alvorecer em nossa cidadezinha da costa mediterrânea espanhola era naquela manhã
distinto dos demais. Todos os habitantes o sabiam... Nós, ainda crianças,
acordáramos curiosos e abríramos a fresta de uma das janelas do quarto que
descortinava o belo panorama marítimo, logo nos deparando com o Astro Rei.
Solene e majestoso, ele deslizava seus raios entre as ramagens das
palmeiras para projetar-se sobre a imensidão das águas, tornando-as ora
róseas, ora douradas, pelas tonalidades da aurora. Sim, algo diferente
pairava no ar, quebrando a costumeira monotonia. Uma alegria saltitante unida
a certo bem-estar sereno fazia-se sentir nos corações, porque era dia de
Corpus Christi, tão solenemente comemorado junto ao Mar Mediterrâneo.
À medida que a
cidade despertava, começavam também os preparativos para a procissão. As
crianças corríamos de um lado para outro, buscando as mais variadas
flores, enquanto as senhoras se preocupavam em pendurar tapetes nas janelas e
sacadas de suas respectivas casas, e em cobrir com folhas de murta e pétalas de
rosa as ruas principais. Os homens, juntamente com o padre Manuel, nosso
pároco, preparavam os locais onde seriam erigidos pequenos altares nos quais o
Santíssimo Sacramento haveria de "descansar" ao longo do percurso. O
ambiente era de festa e de sincera religiosidade, e todos os habitantes nos
reuníamos em função de um mesmo objetivo: tornar a cerimônia o mais bela
possível.
Um, porém - já bem
conhecido de todos -, não tinha as mesmas disposições: Vicente, o
pescador. Apareceu ele em meio aos preparativos, sombrio e mal-humorado:
- Bom dia, senhor
Vicente! Chegou tarde, ouviu? - disse-lhe uma senhora, com ironia - O que
lhe aconteceu? Perdeu a hora? Venha nos ajudar!
- Ajudar? Olha
aqui, eu já tenho muito trabalho - respondeu ele, resmungando - Já sabes que
não sou dessas coisas! Estou saindo para pescar... - Pescar? É o que
o senhor faz todos os dias! - retrucava-lhe outra - Hoje é uma ocasião
especial!
- Eu já disse que
vou pescar! - continuava ele, arrastando as redes que carregava no ombro -
O mar hoje promete muito! Não vou perder esta oportunidade...
Vicente não era
fácil de convencer... Lembro-me de que todos nos entreolhamos, meneando as
cabeças.
- Deixa, Amparo.
Ele nunca vai à igreja. Não será hoje que mudará de ideia.
- Pois tenho fé em
que acabará por fazê-lo!
- Amém! -
respondemos todos.
- Que Deus a ouça,
Maria! - concluiu o padre Manuel. E continuamos os preparativos.
A Missa seria às
três da tarde, seguida da solene procissão. Às duas e meia todos estavam a
postos, inclusive a banda, que aproveitava os últimos minutos para
terminar de afinar seus instrumentos. Com o repicar dos sinos da torre da
igreja iniciou-se a celebração. Que paz, que bênção e que alegria reinavam
então! Ainda hoje me lembro de tudo como se tivesse acontecido ontem!
Entretanto, o mais
impressionante foi o que se passou logo depois... No momento exato em que
o Divino Salvador cruzava os umbrais do templo, escondido sob as Sagradas
Espécies e conduzido pelo padre Manuel num belíssimo ostensório, voltava Vicente
de suas aventuras em alto- mar. A atmosfera séria produzida pelo insigne ato de
piedade arranhou a pobre alma ácida e fria do pescador. Dirigindo-se ao
Santíssimo, teve ele o infame atrevimento de dizer:
- Onde já se viu?
Tu não podes andar sozinho? Com a idade que tens e ainda precisas ser
carregado nos braços?!
Tamanha insolência
não podia ficar impune! Naquele instante, a resposta do Senhor Onipotente se
fez visível aos olhos de todos: uma das pernas do blasfemador se infeccionou,
vendo-se dois homens obrigados a sair da procissão para socorrê-lo, pois não
mais podia manter-se de pé.
Deus era levado
pelo sacerdote por amor, e ele - na flor da juventude e do vigor de sua
saúde - era transportado numa maca, para sua humilhação! Com urgência
tiveram que amputar-lhe o membro acima do joelho, para evitar uma gangrena
mortal; mas, por mais que cortassem, esta não parava de subir e subir, até
que se tornou impossível deter sua marcha fatal...
A lição havia sido
severa, todavia justa e, sobretudo, eficaz. O mesmo Jesus que séculos
antes "passou fazendo o bem" (At 10, 38), devolvendo a vista aos
cegos e a agilidade aos paralíticos, perdoando os pecados e transformando
os corações mais empedernidos, soube também restaurar a saúde espiritual
do nosso Vicente, tirando-lhe a vitalidade do corpo.
Quando, poucos dias
mais tarde, o padre Manuel me convidou para acompanhá-lo a levar o viático
ao doente, deparei-me com a fisionomia conhecida do pescador quão mudada!
Embora seus olhos ardessem pela febre e o mal-estar, muito mais lhe
abrasava o coração de verdadeiro arrependimento pelo horrível pecado cometido.
Que descomunal diferença! Aquele homem arrogante e incrédulo havia aprendido,
pelo sofrimento, a rezar e voltar-se para Deus.
Como gostaria de
poder mostrar a todos os pecadores do mundo, até aos mais endurecidos,
esta comovedora cena que ficou tão claramente gravada no meu interior...
Seu último adeus para esta vida ainda foi um ato de agradecimento a
Jesus-Hóstia que, num milagre de infinito amor, o salvara das chamas da
condenação, abrindo-lhe as portas da bem-aventurança eterna!
Revista Arautos do
Evangelho Agosto-2014
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