Sentado atrás do
balcão de sua loja, o velho Peter sentia-se seguro como um castelão sobre as
muralhas de sua praça fortificada. Décadas de investimentos, contas rígidas e
muito tino comercial haviam edificado aquela espécie de pequena fortaleza
econômica. A inscrição gravada em letras douradas na grossa placa de madeira que
encimava seu estabelecimento bem simbolizava tudo isso: Loja de Penhores Peter
Argern.
Em todos os seus
negócios ele observava uma série de regras estritas, fruto da experiência
adquirida a duras penas. E a primeira era esta, que ele fazia questão de repetir
ao longo do dia: “Nunca confie em ninguém”. E desta sua frase preferida, ele
com freqüência acentuava três vezes a primeira palavra: “Nun-ca, nun-ca,
nunca”.
Os mais velhos da
cidade contavam que Peter passara por difíceis situações, não só quando menino,
mas também quando adulto, no mundo dos negócios. Desde então votara uma
desconfiança mortal contra toda a humanidade. Abandonara completamente a
religião, pois considerava uma tolice tudo quanto falavam os padres a respeito
de perdão e misericórdia. Era a última pessoa de quem se poderia esperar um ato
de compaixão, ou sequer de compreensão.
* * *
Assim, seu senso de
desconfiança tornou-se mais intenso quando, certa manhã, uma menininha entrou
na loja, ficou longo tempo parada com o nariz colado numa vitrina, com os olhos
fixos num dos objetos ali expostos, e depois saiu sem dizer nenhuma palavra.
Era justamente o mostruário das jóias, o mais estimado pelo velho Peter. E o
objeto pelo qual a menina demonstrava tanto interesse era um precioso colar de
safiras, que há anos repousava ali, sobre um veludo negro.
Na manhã seguinte se
repetiu a mesma cena. Mais desconfiado ainda, o experimentado comerciante se
perguntava: teria algum ladrão enviado aquela criança para levantar informações
sobre os valores existentes na loja? Precavido, mandou um dos seus empregados
mais espertos seguir discretamente a menina, quando ela se retirou. Antes do
almoço, o rapaz retornou com algumas informações: ela era órfã e morava numa
pobre casa a várias quadras dali, com a irmã mais velha, que tinha cerca de 25
anos, e outra irmã muito doente, esta com menos de 5 anos; não tinha ligação
com nenhuma pessoa suspeita.
Como explicar, então,
seu interesse pelo precioso colar? Talvez não passasse de um simples encanto
infantil. Peter torceu o nariz, resmungou algo e, dando de ombros, mandou o
rapaz retomar seu trabalho, enquanto ele fazia o mesmo, detrás do seu querido
balcão.
No dia seguinte, lá
estava de novo a menina... Com certa surpresa do velho Peter, ela não se
dirigiu para a vitrina do colar, mas caminhou em linha reta rumo ao seu balcão.
Pôde então observá-la mais de perto. Ela era magra e tinha no máximo sete anos.
Trajava um vestidinho muito pobre, mas irrepreensivelmente limpo. Seus loiros
cabelos estavam atados por um laço que quase se desfazia, de tão gasto; no
entanto, poucas vezes ele tinha visto um laço feito com tanto capricho. Seus
dois olhos azuis e brilhantes destacavam-se no rosto pálido e inocente.
Sem desviar o olhar
da menina, e contrariando seus princípios, Peter Argern se perguntava como
pudera desconfiar de uma criaturinha tão frágil e virginal, quando ela o
despertou de suas cogitações.
— Por favor, senhor,
eu queria comprar aquele colar bonito ali.
— O quêêê? Comprar?
E... quanto dinheiro você tem?
Como resposta, ela
tirou do bolso um velho lenço todo amarradinho e foi desfazendo os nós. Abriu-o
e colocou o conteúdo sobre o balcão. Era apenas um punhado de moedas de pouco
valor. Mas ela, orgulhosa, perguntou:
— Isto dá, não dá?
Consegui todo este dinheiro tirando neve das calçadas dos vizinhos. Sabe, eu
quero dar este colar de presente para minha irmã mais velha. Desde quando papai
se foi e mamãe morreu, ela cuida muito de mim e da minha irmã, e não tem tempo
para si mesma. Hoje é seu aniversário, e o senhor sabe, ela nunca ganha nada.
Às vezes eu a ouço chorando de noite, no quarto. Ela vai ficar muito feliz com
este colar, que é da cor dos olhos dela!
* * *
A sinceridade luzia
no rosto da pobre menina. Esse gesto de inocente gratidão abalou todas as
convicções mesquinhas acumuladas pelo velho Peter ao longo de sua vida egoísta.
Lembrou-se de sua própria infância e das pessoas que o haviam protegido na
aurora de sua existência. Com os lábios tremendo, foi buscar o colar. Sob o
olhar transbordante de alegria da criança, ele delicadamente o acomodou num
estojo de veludo, embrulhou este com um vistoso papel de presente e arrematou o
conjunto com um belo laço de cetim azul. Recebeu o “pagamento” daquelas mãos
pequeninas e, com um afago, despediu-se da sua singular compradora.
Antes do fim da
tarde, uma aflita jovem entrou, com passos rápidos, na loja de penhores. O
mesmo estilo de vestido pobre e os grandes olhos azuis não deixavam a menor
dúvida de que se tratava da mencionada irmã mais velha. Com um gesto firme, ela
colocou o estojo de veludo sobre o balcão e o abriu, fazendo reluzir a
maravilhosa jóia, de um belíssimo azul.
— Este colar é daqui,
da sua loja?
— Sim — respondeu o
comerciante. Com a voz carregada de angústia, ela inquiriu:
— Diga-me com
sinceridade, minha irmãzinha o roubou daqui?
— De modo algum! Sua
irmã o comprou honestamente, hoje de manhã.
— Mas como?! A pobre
não tinha mais que umas poucas moedas! Mesmo se vendêssemos dez vezes tudo
quanto temos, nem de longe poderíamos comprar uma só destas safiras!
Com um gesto
delicado, o velho Peter devolveu-lhe o estojo, dizendo:
— Ah! a senhorita
está enganada... Sua pequena irmã pagou o preço mais alto que qualquer pessoa
pode pagar.
E, acentuando três
vezes a palavra “tudo”, explicou:
— Ela deu tudo, tudo,
tudo que tinha, só para ver você feliz.
Na manhã seguinte,
para surpresa do pároco, o velho Peter se apresentou bem cedo na igreja. Queria
fazer uma boa confissão, disposto a reparar toda uma vida de egoísmo e
insensibilidade para com o próximo.
E as irmãzinhas órfãs
nunca mais sofreram privações, pois desse dia em diante passaram a contar com
um rico e generoso protetor...
Maria Teresa Guerra – Arautos do Evangelho –
Abril 2007
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