terça-feira, 2 de agosto de 2016

Apenas água com sal...

A multidão alvoroçada se reunira na praça e todos comentavam algo inusitado: ninguém mais conseguia pescar!
- Acaso esgotaram-se os peixes do mar? - perguntava um.
- Um maremoto se avizinha? - interrogava outro.
- Os tubarões devoraram os cardumes? - se aventurou a indagar uma criança...
Dúvidas como estas assaltavam não poucos moradores da aldeia, cujo sustento dependia da pesca, especialmente abundante naquela região. Entretanto, havia semanas que os pescadores lançavam redes e anzóis, sem resultado.
Enquanto os habitantes tentavam entender o motivo da tragédia, reuniam-se no escritório da basílica o pároco e seus assistentes. Debatiam eles sobre a melhor forma de resolver outro problema: afervorar o povo, que a cada dia se afundava mais na preocupação com o dinheiro e as coisas materiais.

Vários intentos caíram no vazio... Na última convocatória para uma procissão com o Santíssimo Sacramento, o número de fiéis chegara apenas a meia centena, contando os coroinhas, sendo que nas épocas de devoção ardorosa a aldeia em peso se mobilizava. Os pais já não levavam os filhos à catequese, julgando ser perda de tempo, e não mais acorriam aos Sacramentos.
Havia um mês alguns monges tinham palmilhado bairro a bairro, pregando a importância do uso da água benta, inclusive oferecendo a cada família belos potes de porcelana para guardá-la. Contudo, poucos se interessaram. A maioria destes potes agora "enfeitava" os armários da sacristia...
No calor do debate, o toque do carrilhão anunciou o Angelus. Depois de rezá-lo, o padre Rafael saiu a fim de se preparar para a Missa das seis e meia.
Entrando no templo, seus olhos pousaram sobre Rubem e Marcelo, dois jovens irmãos que conversavam, aflitos.
- Será que em todos os mares do mundo vão acabar os peixes? Gostava tanto de ajudar papai a pescar de madrugada - dizia Marcelo, o pequeno.
- É... e eu queria me tornar um pescador experto! - acrescentava o mais velho.
Acercando-se, o sacerdote os saudou.
Eles passaram a contar como os pescadores da aldeia estavam confundidos com a situação... Até o próprio pai! Atento aos pormenores da narração e percebendo o desconcerto de suas inocentes cabecinhas, o padre disse:
- Vocês já rezaram, pedindo a proteção de Deus? Venham aqui, pois tenho algo para lhes dar.
Na sacristia, presenteou-os com dois dos potes de porcelana contendo água benta e instruiu-os a respeito de seu poder para afastar os demônios, sobretudo os que infestam os ares, promovem brigas e prejudicam a vida das pessoas.
Contentes como nunca, voltaram para casa, ansiosos por apresentar aos parentes aquele poderoso remédio. Porém, apenas assomaram na esquina, a mãe bradou:
- Estas são horas de chegar? A noite caiu e alguma desgraça lhes poderia ter ocorrido no caminho!
Rubem retrucou com segurança:
- Não nos passaria nada, pois o padre Rafael nos deu esta água benta que afugenta os...
E sem deixá-lo terminar, a mãe interrompeu:
- Sem dúvida o pote é belo! Mas aí só tem água com sal. E se vão ao mar, o que verão? Água com sal... e em maior abundância! Não acredito no poder dessas crendices...
Assim ela encerrou a discussão e os dois foram dormir desapontados.
Ao raiar da aurora, Rubem pensou em ir à basílica para pedir um conselho ao pároco. Foi chamar o irmão e não o encontrou em sua cama. Onde estaria? Depois de muito procurá-lo, desceu à praia, preocupado. Seguindo uns rastros, viu Marcelo sentado sobre as pedras do cabo, molhando-se com as leves ondas que ali quebravam. Segurava a cabeça com as duas mãos e olhava as águas, admirado. Que estaria vendo?
Percebendo a presença de Rubem, Marcelo disse:
- Olhe! Veja que lindos cardumes! Nunca tinha visto peixes como estes: uns azuis com amarelo, outros vermelhos...
Aproximando-se, mas sem entender se o irmãozinho estava desperto ou sonhando, Rubem olhou para a água cristalina.
- Nossa! Voltaram os peixes! E tão belos como estes tampouco tinha visto! - disse ele.
Marcelo explicou o que se passara:
- Fiquei pensando durante a noite nas palavras de mamãe... Vim para cá, bem cedo e joguei um pouco de água benta na água do mar, para ver a diferença: no lugar onde caiu, começaram a aparecer os cardumes.
Rubem pensou um pouco e correu à igreja para avisar ao padre Rafael. Este, percebendo a mão de Deus no fato, foi até a praia, apressadamente. Chegado à margem, viu quantos peixes subiam das profundezas das águas. Eles só estavam, todavia, onde Marcelo vertera água benta.
Convocou então os pescadores, para que ali se reunissem. A multidão acudiu pressurosa para ver o que estava acontecendo. Subindo num pequeno promontório, o religioso fez uma prédica, explicando ao povo que a falta de peixes fora obra do demônio. Deus permitira aquele mal por sua tibieza e falta de oração. No entanto, bastou a fé de duas crianças inocentes e um pouco de água benta para afugentar o maligno cheio de temor!
A assembleia o ouvia imóvel e silenciosa.
O pároco pôs-se a percorrer a praia, de norte a sul, aspergindo-a com o hissope. Depois, ordenou aos pescadores que se afastassem da costa, lançassem as redes e... oh, prodígio! Não conseguiam sequer subi-las aos barcos, tão pesadas estavam. Os peixes, antes desaparecidos, pulavam entre as ondas, como se exultassem de alegria. Jamais houvera pescaria tão abundante e de tamanha qualidade em seus mares!
O povo caiu de joelhos, louvando a Deus, e todos creram no poder da água benta. Um surto de fervor inflamou a aldeia: a igreja voltou a encher-se aos domingos, a frequência aos Sacramentos tornou a ser grande e a devoção à água benta cresceu, a ponto de contagiar as cidades vizinhas.

Revista Arautos do Evangelho – Agosto 2015

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