sábado, 30 de maio de 2015

Um criminoso entre 56 inocentes

A leitura da carta do rei deixou Genaro imerso em graves considerações. Que difícil incumbência lhe dava! Ser rígido e misericordioso ao mesmo tempo... e logo na prisão de Castel dell’Uovo!

Conta-se que no antigo Reino de Nápoles, muito antes da invasão das tropas francesas, morrera o grão-conselheiro que, com sabedoria, havia auxiliado o soberano a governar a nação, e este hesitava sobre quem nomear para substituí-lo.
Inclinava-se para um amigo seu, chamado Genaro, experiente juiz, homem probo que não titubeava em testemunhar publicamente sua fé. O importante cargo, porém, era cobiçado por outras personalidades da Corte, e o rei precisava evitar entrechoques partidários. Procurando encontrar um meio de nomear Genaro sem causar ressentimentos nos opositores, teve certo dia uma idéia genial: “Genaro é sem dúvida o mais competente de todos os magistrados do Reino. Vou propor-lhe um caso bem intrincado, e tenho certeza de que ele o resolverá. Demonstrada publicamente sua capacidade, ninguém poderá queixar-se de ser ele nomeado grão conselheiro...”
Tomada essa resolução, o soberano enviou a Genaro uma carta:

“Necessito de teu valioso auxílio para resolver uma complexa questão. Com freqüência, chegam-me aos ouvidos queixas de que a justiça napolitana é dura e inflexível. Visando verificar a procedência ou não dessas reclamações, desejo fazer rever os processos de alguns condenados. Para isso, escolhi a prisão de Castel dell’Uovo, onde estão reclusos os piores criminosos de Nápoles.
“Peço, portanto, que para lá te dirijas e reexamines o processo de cada um dos presos. Confio na tua arguta inteligência e ampla capacidade jurídica. Sei que darás pública demonstração de misericórdia, sem ferir em nada a justiça nem a lei que há séculos norteia nosso Reino.
“Envio com esta um Decreto Real que te concede poderes para administrar a justiça em meu nome, junto aos encarcerados de Castel dell’Uovo.”
* * *
A leitura dessa carta deixou o magistrado imerso em graves considerações. Que difícil incumbência lhe dava o rei! Ser rígido e misericordioso ao mesmo tempo, e logo na prisão de Castel dell’Uovo! Ele, porém, não era homem de esquivar-se das dificuldades. Invocou a proteção de Santo Ivo, padroeiro dos advogados, despediu-se de sua esposa e partiu para a fortaleza-prisão.
Os meios de transporte dessa época não eram rápidos como os de hoje. Assim, quando Genaro chegou ao mal-afamado presídio, espalhara-se já por toda parte a notícia do desafio jurídico que ele ia enfrentar. As reações eram as mais variadas. Alguns céticos consideravam impossível usar de misericórdia para pôr em liberdade nem um sequer daqueles criminosos. Outros, pelo contrário, temiam que o juiz, num acesso de liberalidade, pusesse de lado a justiça e fizesse soltar alguns ou muitos deles. Todos, entretanto, reconheciam ser esse um caso complexo, no qual estariam em jogo tanto a competência profissional de Genaro quanto a bondade que se esperava de um magistrado católico.
 * * *
A primeira providência de Genaro foi mandar reunir no pátio todos os reclusos, 57 ao todo. Que fisionomias! Naqueles rostos assustadores, viam-se estampados todos os vícios.
Sobre sua mesa, estavam os processos: assassinatos, roubos, sequestros e outros crimes tão vis que é melhor nem mencionar. Os reclusos cochichavam entre si, usando um vocabulário cheio de gírias. Um bandido com tapa-olho e nariz torto comentou:
— Mo’... Esse juiz é um carola, um papa-hóstias... Se ele for cumprir o que está escrito na Bíblia, terá de soltar-nos!
Outro patife, meio desdentado e com uma grande cicatriz na face, retrucou:
— É isso mesmo! Olha só a cara dele! Esta tarde, estaremos na rua, camaradas!
Vendo todos reunidos, Genaro mandou que, devidamente escoltados, viessem um a um diante dele, para deporem. Ao chegar o primeiro, perguntou-lhe:
— Então, por que você está aqui?
Fazendo a melhor cara possível, o criminoso declarou-se inocente, vítima de calúnias e tribunais injustos. E concluiu cinicamente:
— Estou certo de que agora me será concedida a liberdade à qual tenho direito, como homem honesto que sou!
O juiz ouviu com muita atenção e fez o escrivão anotar no livro o depoimento. Veio em seguida o segundo, depois o terceiro, o quarto... até o 56º. Todos afirmavam sua inocência, alegando os mais variados motivos. E Genaro demonstrava estar compadecido pelas injustiças de que aqueles homens declaravam serem vítimas. A tal ponto que os guardas comentavam entre si: “Será possível que o juiz esteja acreditando nas mentiras desses bandidos? Nem o mais ingênuo dos homens daria crédito a tais patifes!”
Por fim, veio o último. Era um rapazola magrelo e quase imberbe, que não devia ter mais de 19 anos. Não era arrogante como os outros, mas tímido e cabisbaixo. Estava envergonhado de se defrontar com o juiz, representante da justiça e do rei. A tal ponto destoava dos outros, que o juiz perguntou ao comissário de polícia de quem se tratava.
— Ah, doutor... esse coitado aí é um órfão, lavrador desempregado. Ele foi apanhado ontem roubando legumes e frutas na feira. Está aqui só porque o crime foi cometido nas cercanias, mas logo será transferido para uma cadeia de baixa periculosidade, antes que os outros lhe dêem as “boas vindas”...
O juiz franziu a testa, olhou fixamente o rapaz e perguntou:
— E você, jovem patife, o que tem a dizer a seu favor?
Abaixando ainda mais a cabeça, o pobre, com voz sumida, declarou:
— Nada, senhor... Roubei, e isso é um pecado. Desonrei o nome de meu falecido pai, e não segui o ensinamento de minha pobre mãe a respeito dos Mandamentos. É justo que pague na cadeia pelo mal que cometi.
O magistrado ficou ainda mais sério, e inclinando-se para frente sentenciou:
— Basta! Com este caso, concluo a missão que o rei me deu. Quanto aos 56 depoentes anteriores, todos afirmaram sua mais completa inocência. Coisa muito admirável, numa sociedade tão corrompida como a nossa. E batendo com vigor o martelo de madeira sobre a mesa, proclamou:
— Em nome de Sua Majestade, declaro inocentes todos esses 56.
Os criminosos sorriram satisfeitos, enquanto os guardas se entreolhavam, incrédulos e abismados. E continuou o juiz:
— Decido também que o Estado Napolitano tem o dever de proteger esses inocentes contra os maus elementos que imperam lá fora. Assim, todos vocês deverão continuar neste cárcere por tempo indeterminado, custodiados pela polícia.
Voltando-se em seguida para o rapaz, o último a prestar depoimento:
— E você, malvado, que tão descaradamente reconhece seus crimes, eu o expulso daqui, para não contagiar esses 56 inocentes com sua malícia. Órfão, faminto e desempregado... Pois bem, condeno-o também a ser contratado como jardineiro no Tribunal de Nápoles. Procure-me depois para acertar o cumprimento de sua pena. Guardas, acompanhem esse rapaz até a igreja mais próxima, caso ele queira confessar-se, e deem-lhe como castigo um bom lanche antes de partirmos.
* * *
Que reviravolta! Pasmos e arrasados, os criminosos ficaram mudos, enquanto os guardas, por sua vez, sorriam de satisfação.
A notícia do espetacular julgamento correu todo o Reino, e o Dr. Genaro foi nomeado grão-conselheiro. O rei ficou muito satisfeito, pois seu amigo não o decepcionara, e, naturalmente, ninguém ousou opor-se à nomeação de juiz tão justo e sagaz.
Quanto ao “malvado” rapaz, foi contratado como jardineiro do Tribunal, bendizendo o magistrado que o considerara o único criminoso entre aqueles 56 inocentes...

Revista Arautos do Evangelho ago 2006

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