terça-feira, 7 de junho de 2016

Deus pode ser enganado?

Nos tempos medievais floresciam as catedrais e os povos caminhavam à luz do Evangelho. Ao sul da França viviam os Clochers, família dotada de muita arte. Dedicavam-se eles à complexa tarefa de fundir sinos. Conheciam os metais em seus mais específicos aspectos e sabiam as ligas, a espessura, o peso e a dimensão da boca ou do badalo de cada sino, para que tivesse o timbre desejado e tocasse a nota que lhe correspondia. Não só faziam sinos para as igrejas com um único campanário, como eram especialistas em carrilhões.
Os Clochers se ufanavam de ser descendentes do patriarca que, havia alguns séculos, servira a Carlos Magno, o ilustre imperador do Sacro Império, motivo pelo qual a fama de sua linhagem se espalhara pela Europa.

Louis Clocher pertencia à décima segunda geração e herdara não só o talento e a virtude de seus ancestrais, como também a tradicional oficina. Tivera três filhos, aos quais educara eximiamente. Pierre, o caçula, nascera-lhe na velhice e era seu preferido; Jacques, o do meio, era muito reto, mas um tanto desastrado com os sinos... Ambos eram piedosos como o pai e se dedicavam ao campo. François, o mais velho, possuía o dote artístico dos avós e, desde a infância, ajudava o pai, demonstrando muita aptidão para o ofício. Porém, não tinha suas qualidades sobrenaturais, pois não gostava de rezar nem de assistir à Missa...
Debilitado em sua saúde e pressentindo a morte próxima, o velho Clocher mandou chamar um sacerdote a fim de receber os Santos Óleos. Revigorado por tal consolo espiritual, chamou junto a si os filhos a fim de dar-lhes suas últimas recomendações.
 — Pierre e Jacques, meus queridos filhos, sede em tudo fiéis a Deus e observantes de seus Mandamentos! Por mais árduo que vos pareça, nunca afasteis do caminho da virtude! Tende coragem! Deixo-vos por herança nossos rebanhos e campos. Administrai com honestidade vossos próprios bens e vigiai, pois de tudo tereis que prestar contas ao Juiz Eterno.
Após dar-lhes a bênção paterna, Louis fitou detidamente o primogênito e disse:
— François, meu filho, a ti confio o mais precioso legado que recebemos de nossos antepassados: a Religião Católica! Peço-te que, de hoje em diante, sejas mais devoto de Nossa Senhora e assíduo aos Sacramentos! Tu deves continuar nossa tradição, nascida da fé de nossos avoengos, e para isso será tua a oficina e os utensílios que, há tantas gerações, são usados na fabricação dos sinos e carrilhões Clochers. Contudo, nunca te deixes arrastar pela ambição! Sê reto e íntegro em teus empreendimentos e não desonres nosso nome. Sobretudo, não ofendas a Deus!
Poucos dias depois Louis entregou santamente sua alma a Deus. O carrilhão da catedral deu o toque fúnebre e suas exéquias foram muito concorridas, pois todos queriam homenagear tão exemplar artesão.
Os anos se passaram. Jacques e Pierre, além de cuidar do que lhes coube, tornaram-se comerciantes de tecidos e lã, sem se desviar do cumprimento dos ditames paternos. François, por sua vez, dedicou-se com êxito ao ofício familiar. No entanto, lhe entrara no fundo da alma o verme da cobiça... Desprezando as advertências do pai, não era honesto em seus negócios, jamais rezava e visitava as igrejas apenas para fazer propaganda de seu trabalho, levando uma vida fora da graça de Deus.
Certo dia, ao limpar a torre da catedral, um sacristão percebeu que o grande sino — o bourdon — estava rachado. Tomado de zelo, comunicou ao Bispo e a notícia se espalhou pela cidade.
François, muito esperto, logo se apresentou ao sacristão oferecendo-se para fundir um novo sino. Pensava ele em um meio desonesto para conseguir muito lucro com o serviço... O sacristão não percebeu aquela má intenção e conduziu-o ao prelado. O ganancioso François então lhe garantiu:
— Dom Jean, eu poderei fazer o novo sino. Só preciso de algumas toneladas de bronze... e também de prata... Prometo que farei um bourdon superior ao que agora está na catedral!
O Bispo não era homem de poupar esforços para abrilhantar a liturgia e dar maior esplendor à casa de Deus. Sem desconfiar de nada, Dom Jean ordenou que fornecessem a François o donativo em metais que a diocese recebera de uns nobres da região.
Tendo François recebido matéria-prima tão excelente, consumou seu funesto plano: escondeu tudo em seu depósito e, em pouco tempo, fabricou um sino grosseiro com as ligas metálicas mais ordinárias que possuía. Unindo arte e esperteza, lustrou-o tão bem que parecia de primeira qualidade...
Antes de completar um mês da encomenda, lá estava François para entregá-la! O Bispo ficou surpreso e contente com tamanha rapidez, marcando logo a data da bênção do sino:
— Meu bom sineiro, no próximo dia 22 de julho celebraremos Santa Maria Madalena, nossa padroeira. É uma boa ocasião para abençoarmos o sino.
François voltou para a casa já sonhando com o lucro que teria com a vultosa quantidade de prata e bronze que roubara da diocese...
No dia marcado, o povo se reuniu para a festa e inauguração do bourdon. François ali estava esperando honras e elogios. Após a bênção, levantaram o sino no alto da torre principal e todos aguardavam seu primeiro toque. Qual não foi o estupor geral quando, no momento esperado, o dito bourdon não emitiu sequer um ruído!...
— Que está acontecendo? — perguntavam-se.
Sem entender, os sacristãos se revezavam para tentar tirar algum som com o grande badalo, mas foi em vão!
— Como pode um sino não tocar?! — exclamou o Bispo, atônito.
Os olhares dos presentes incidiram em François que, assustado, justificou-se:
— Decerto é culpa dos que o colocaram lá em cima!
Inseguro e pressentindo que algo de insólito se passava, ele inventou muitas outras mentiras, pois o sino era inferior ao encomendado... todavia, deveria tocar!
— Vós não sabeis nada! Eu vos mostrarei a beleza de meu sino!...
A multidão abriu espaço. François subiu à torre e agarrou a corda. Apenas movimentou o badalo, quando o enorme sino despencou e caiu certeiro sobre ele, tirando-lhe a vida!

Coincidência ou castigo?... Toda a cidade que assistia à cena na praça da catedral ficou impressionada e temeu a Deus em seus misteriosos e justos juízos. Ao fazerem o inventário dos bens do sineiro, encontraram em seu depósito os metais que havia roubado! Comprovou-se, assim, que ele havia mentido e tentado enganar não só aos homens, mas a Deus... 

Revista Arautos do Evangelho- jul 2015

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